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Críticas

Críticas aos filmes da Mostra Origens e da Mostra Ruptura do dia 05/12

Por Déborah Tomaselli e Paullo Fernando

MOSTRA ORIGENS 

05/12, 14h


Meça Três Vezes Antes de Cortar: Fragmentos. Rupturas. Pluralidade. Reflexões. 

Por Déborah Tomaselli

Meça Três Vezes Antes de Cortar é uma obra que retrata um universo místico e performático, no qual bois, boiadeiros e seres encantados conduzem o espectador por uma dança simbólica, rica em tradição e espiritualidade. A narrativa é uma releitura ousada, criativa, contemporânea e artística do clássico Bumba-Meu-Boi, combinando mitologia e reflexão social com elementos da cultura popular. Em uma conversa com boiadeiros perdidos na mata, o protagonista é lembrado de uma lição fundamental: todo sangue é valioso, mas a língua é a carne mais rara de todas, simbolizando o valor da comunicação e a complexidade dos laços familiares e culturais.

Enquanto na saga original Pai Francisco precisa pegar a língua do boi mais caro do patrão para alimentar sua esposa grávida, Catirina, no filme Meça Três Vezes Antes de Cortar, o protagonista enfrenta um novo desafio. Ele precisa buscar o sangue de um boi raro para salvar seu pai, revelando camadas de significado sobre sacrifício, cura e a complexidade das relações familiares. Essa busca não é apenas uma jornada física, mas um caminho para o amadurecimento e reconciliação, onde a relação tumultuada entre pai e filho é explorada de forma visceral e sensível. O filho, que não se sente ouvido ou compreendido, passa por uma jornada ao longo do filme, levando o público a refletir sobre o papel da escuta, da empatia e da valorização dos laços.

Sob a direção de Zulmí Nascimento, a obra assume uma estética vibrante e pulsante, com um apelo visual forte que utiliza cores intensas tanto na fotografia quanto na direção de arte e figurinos. 

Zulmí Nascimento é conhecido por transitar entre produções que combinam cinema, dança e artes visuais. Ele pesquisa as manifestações Afropindorâmicas - que reúnem elementos das culturas quilombola, negra e indígena -, em diálogo com questões étnicas e socioambientais. Meça Três Vezes Antes de Cortar revela um compromisso em manter viva a cultura brasileira, mostrar a pluralidade do nosso País e enaltecer o nosso folclore, ao mesmo tempo em que traz um olhar contemporâneo sobre temas como identidade e resistência.

Meça Três Vezes Antes de Cortar é um filme performático, onde dança, poesia, e expressões corporais se entrelaçam para formar uma obra contemplativa e reflexiva. Zulmí convida o espectador a uma jornada de imersão, onde os elementos simbólicos não são apenas referências, mas pilares de uma cultura viva, transformadora e em constante reinvenção. A performance dos atores, que trazem na fisicalidade de seus movimentos e olhares a essência da brasilidade, acrescenta ainda mais profundidade à experiência. 

Com sua abordagem poética e fragmentada, o filme provoca reflexões sobre o ciclo de vida, morte e renascimento – um tema essencial para nossa cultura, marcado por ritos, lendas e histórias de resiliência.

O curta-metragem propõe ao público uma reflexão sobre as identidades culturais e a nossa relação com as raízes e o futuro. São fragmentos, rupturas e novas possibilidades que convidam o espectador a refletir sobre o ciclo da história, onde tradições são continuamente redescobertas e reinventadas. Assim, Meça Três Vezes Antes de Cortar não é apenas uma obra audiovisual experimental com personagens que têm nuances emocionais e culturais; é um convite à introspecção, uma celebração da cultura brasileira e um lembrete de que a nossa história é viva, pulsante e aberta para novas interpretações.

Fragmentos. Rupturas. Pluralidade. Reflexões. Qual é o Brasil que queremos?



A Chuva do Caju: até quando teremos esse precioso fruto?

Por Déborah Tomaselli

A Chuva do Caju conta a história do Seu Alvino e da Dona Neusa, que vivem no coração de um vale escondido nas profundezas do Brasil Central. Lá, no quilombo Kalunga Vão de Almas, eles cultivam o que a terra lhes oferece generosamente, colhendo frutos nativos, como o caju do cerrado e o baru, numa prática que preserva a memória e a riqueza natural de sua comunidade. Com uma existência que parece resistir ao passar do tempo, o quilombo sobrevive há mais de dois séculos, mas hoje enfrenta uma nova ameaça: a seca cada vez mais severa, devido ao desmatamento e devastação do Cerrado, motivados pelo agronegócio.

Enquanto a Amazônia recebe grande parte da atenção mundial, o Cerrado, bioma igualmente essencial, perde espaço e biodiversidade rapidamente. Hoje, apenas 30% de sua cobertura original ainda resiste no estado de Goiás. O documentário A Chuva do Caju aproveita um antigo conto dos ancestrais Kalunga sobre o fruto do caju para tecer uma narrativa profundamente tocante, que explora as origens e a identidade daquele povo, a história da escravidão e, sobretudo, a urgência da preservação do Cerrado, um ecossistema que está perigosamente perto da extinção.

Situada na Chapada dos Veadeiros, a região é lar de um dos biomas mais preservados do Cerrado brasileiro e está intimamente ligada à cultura e aos costumes da comunidade Kalunga, o maior quilombo remanescente do Brasil, abrangendo os municípios de Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás. Formada por descendentes de escravizados que fugiram no século XVIII, a comunidade Kalunga preserva tradições culturais e modos de vida transmitidos por gerações.

Sob a direção sensível de Alan Schvarsberg, o documentário combina cenas do cotidiano da comunidade Kalunga, entrevistas com seus habitantes e imagens do Cerrado que capturam a essência belíssima da paisagem. A fotografia é deslumbrante, cada enquadramento revelando a beleza resistente de um bioma que luta para sobreviver. Com um olhar poético, o diretor nos leva a sentir a importância de preservar tanto o ambiente quanto a rica herança cultural dos Kalunga, que infelizmente estão se perdendo a cada dia.

A trilha musical é um destaque por si só, composta por canções tradicionais que emergem das raízes do povo Kalunga, nos levando mais fundo à sua história e cultura. Essas músicas se entrelaçam perfeitamente com as cenas, criando uma imersão que transcende o documentário e nos conecta intimamente com o espírito dessa comunidade.

A Chuva do Caju é uma obra delicada e poderosa; uma chamada urgente à ação, que nos alerta para as irreparáveis perdas que estamos enfrentando — do bioma cerrado à cultura Kalunga — e a necessidade de nos unirmos para reverter essa trajetória. Além de nos ensinar sobre a história, cultura e as raízes do povo Kalunga, o filme nos leva a refletir sobre nossa responsabilidade na preservação dessas riquezas naturais e culturais para as futuras gerações.


Abá e Sua Banda: para mudar o mundo você não precisa ser da realeza, basta ter a semente da mudança em você

Por Déborah Tomaselli

Dirigido por Humberto Avelar, Abá e Sua Banda é um longa-metragem de animação musical e aventura que mergulha os espectadores em um reino encantador, onde as frutas ganham vida com feições e personalidades humanizadas. A trama gira em torno do rei Caxi, um abacaxi de coração nobre, que, após a perda de sua esposa, a rainha Nanás, encontra-se enfraquecido e sem energia para liderar. Nesse momento de vulnerabilidade, Caxi é manipulado pelo próprio primo, Don Coco, um astuto coco que secretamente planeja se apoderar do reino e o destrói pelas sombras. Curiosamente, a voz do vilão é interpretada pelo próprio diretor, adicionando um toque especial ao personagem.

O rei Caxi tem um filho, Abá, o príncipe herdeiro que carrega o peso de ser a próxima liderança, mas enfrenta um conflito interior: órfão de mãe e avesso ao destino traçado para ele, sonha em ser músico. A música, no entanto, não é apenas um capricho; é a conexão mais profunda que ele tem com sua mãe, a falecida governante, que lhe transmitiu amor e inspiração através da melodia. Em busca de sua identidade, o protagonista deseja ardentemente explorar o seu dom musical, o que se torna uma jornada de autodescoberta e aceitação.

No aspecto visual, Abá e Sua Banda inova com uma estética única ao combinar animação 3D com elementos de animação 2D, conferindo ao filme um estilo próprio, criando cenas que se assemelham a ilustrações em movimento. Essa abordagem contrasta com a estética muito realista comum em muitas animações, propondo uma linguagem visual poética e lúdica que cativa tanto adultos quanto crianças.

As vozes originais do filme estão excepcionais, dando vida e emoção a cada personagem. A equipe conta com talentos como Felipe Bragança, Zezé Motta, Rafael Infante, Robson Nunes, Carol Valença, Ítalo Luiz e Mauro Ramos. Eles entregam performances cativantes, e os diálogos, recheados de trocadilhos envolvendo frutas, garantem risadas e momentos memoráveis.

O filme se passa em torno do Festival da Primavera, o evento mais importante do Reino de Pomar, que celebra a renovação da natureza e reflete temas de política, democracia, união do povo na luta contra a tirania, diversidade e preservação ambiental. Por meio de uma narrativa envolvente e músicas vibrantes, Abá e Sua Banda traz reflexões para toda a família, sendo um belo exemplo de que é possível aliar ao entretenimento, à aventura e ao humor um conteúdo centrado em meio ambiente e temas políticos e sociais.

Para os amantes de música, Abá e Sua Banda é um deleite visual e sonoro. A trilha musical, assinada por André Mehmari, inclui canções originais compostas por Silvia Fraiha, Milton Guedes e Mehmari, com referências musicais a bandas icônicas como The Beatles e Kiss, entre outras. Essas influências acrescentam profundidade e familiaridade à narrativa, reforçando as mensagens de coragem, união e transformação.

Abá e Sua Banda é uma história de aceitação e amadurecimento. O retrato de um curto e turbulento momento da vida do príncipe Aba?: a transição da infância para as novas cores da maturidade. No final, o filme deixa lições poderosas: um País se constrói junto com o povo; e para mudar o mundo, você não precisa ser da realeza, basta ter a semente da mudança em você. 


MOSTRA RUPTURA 

05/12, 19h

Não Precisa Pedir Desculpa

Ficção
Direção: Franco Cavezale

Por Paullo Fernando

Quantos elementos são necessários para fazer, em menos de 17 minutos, uma história com tantas camadas do universo do terror e do ‘queer’ ao mesmo tempo? Não Precisa Pedir Desculpa responde a isso com excelência, diversão e muito mais.

O curta nos insere em uma noite qualquer, de uma entrega de bebidas onde um papo trocado vira um flerte adolescente intrigante, onde Rafa (Ariel Lara), que é homem trans gay, e Henrique (Hugo Affonso), que se assume “não tão hétero assim”, nos apresentam uma casa, drogas, um passado que não precisava ser comentado - para mostrar o quão desnecessários podemos ser perante a sexualidade alheia - e um desfecho já esperado com referências a slashers dos anos 90, tais como Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado (1997) e outros títulos que um segredo vira algo fatal no grupo de amigos.



Ainda falando de referências de outros filmes, Não Precisa Pedir Desculpas traz o tema vampiresco ou podemos dizer satânico de alguma maldição herdada ou passada para nosso protagonista. Com uma aparência meio híbrida (meio vampiro, meio criatura desconhecida e selvagem), me lembrou a estética de Amaldiçoados (2004) e a franquia Anjos da Noite (2003).

O elenco entrega uma boa atuação respeitando o fôlego das três partes importantes de desenvolvimento do roteiro. Fica bem encaixado como Rafa foi parar ali, o que aconteceu para se encaminhar ao plot e o desfecho intrigante.  



Adoro o tom obscuro que o diretor Franco Cavezale entrega junto a fotografia que teve um trabalho excelente de execução principalmente nas luzes, cenários onde acontecem as principais cenas  e a maquiagem que não fica para trás, desde a transformação de Rafa até as entranhas de suas vítimas.



Espero que o diretor Franco Cavezale nos traga que lugar Rafa foi conhecer no próximo Halloween.



Jogaram o César Fora

Animação
Direção: Alice Kupac

Por Paullo Fernando

Quem aí passou dos 30 e não se lembra de A Chave Mágica (1995) e do tão famoso Toy Story e sua franquia de sucesso até os dias de hoje? Pois é nessa pegada que Jogaram o César Fora se entrega em um diálogo de gravuras e desenhos inacabados de uma artista em seu ateliê.

O curta tem contextos bem sexualizados nessa troca entre as gravuras: elas alegam, diante de cada limitação de si mesmas, terem sido feitas de tal forma e finalizadas ou não por falta de uma borracha, de uma ideia que não terminou, e por aí vai. Isso inclusive já nos induz a pensar como seria a personalidade do artista que está pintando tais figuras, já que ele não é mostrado efetivamente no curta, somente de forma subjetiva.


O cômico é que toda a situação e interação traz questões sociais, como até a mentalidade usada quando se trata de um mural infantil/escolar - literalmente o uso da linguagem dessa faixa etária está verossímil com o que falam integrantes daquele espaço.

Aqui temos como plot uma nova pintura que fará parte do mural muito em breve e a curiosidade das demais artes feitas é compartilhada com a nossa ao assistirmos, já que fica a expectativa de “será que vai ser algo finalizado ou pela metade?”



A montagem do curta é fenomenal! Da edição dos efeitos até a de som que em sua sincronia se harmonizam, principalmente na narração dos personagens. O elenco encarnou bem suas pinturas e entregaram satisfatoriamente as personalidades diversas ali. 


O que mais me agradou foi esse espaço lúdico - quando somos crianças pensamos “será que meus brinquedos falam quando eu não estou perto ou dormindo?”. Se essa ideia foi um dos pontos de referência da roteirista e diretora Alice Kupac, tudo se torna mais especial e mágico enquanto experiência.



Lista de desejos para Superagüi

Documentário
Direção: Pedro Giongo

Por Paullo Fernando

Uma narrativa construída através do tempo onde as linhas se cruzam e se esticam do começo ao fim da história, baseadas nos pequenos desejos dos moradores da ilha de Superagüi, litoral Sul do Brasil, perto de onde o diretor nasceu, portanto inspiração não poderia faltar nessa fábula.


A Lista de Desejos para Superagüi entrega simplicidade, belas paisagens e uma rotina dentro de uma comunidade de pescadores que nos leva a outras produções brasileiras antigas ou até às histórias que nossos avós contavam. De como eram suas casas, costumes e a vida até os dias de hoje, em meio ao cotidiano simples.

Lembrando um pouco da década de 50, quando o cinema novo estava surgindo, o documentário me lembrou em cenas coloridas, vários ângulos e a trilha sonora de Rio 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955). A edição com takes demorados em que o texto entra junto a uma trilha sonora de pássaros ao fundo, sons de vento ou do mar me lembrou clássicos como Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964). São produções surgidas e pensadas em outros contextos, mas com as mãos de Pedro em sua especialidade de montagem, o filme me remete a essa época importante do cinema nacional.


As dificuldades mostradas são pequenas diante dos sonhos que aqui compartilhados, formam a lista de pedidos que leva ao título do primeiro longa do diretor. Desejos simples que vão de uma aposentadoria suada até uma simples cesta básica a troco de serviços voluntários. O jogo de realidade e ficção aqui é presente e potencializado pelo roteiro e pela montagem.


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