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Críticas

Críticas aos filmes da Mostra Origens e da Mostra Ruptura do dia 06/12

Por Déborah Tomaselli e Paullo Fernando

MOSTRA RUPTURA 

06/12, 14h

Hoje Eu Só Volto Amanhã

Animação
Direção: Diego Lacerda

Por Paullo Fernando

Quando a gente fala no dito popular “puro suco do Brasil”, nos referimos às características, manias, costumes, comidas típicas, roupas, sotaques regionais, memes e tudo mais que de forma infinita o Brasil consegue nos proporcionar. Então se torna interessante captar em imagens, sons e várias outras formas de se fazer arte, tais fragmentos “brazucas”.



No curta Hoje Eu Só Volto Amanhã, temos isso demonstrado em cores, nas falas, atitudes, na música, no frevo e no calor do carnaval e seus acontecimentos, independente do lugar. A personagem já transmite a energia de um bom brasileiro curtindo o maior evento do ano, símbolo mundial do Brasil, e enxergo, em todo esse processo, uma homenagem à data e a como nós costumamos curti-la. 

Não há uma mega história por trás do roteiro, mas tem uma montagem fenomenal. Existem sensações sendo transmitidas a todo momento. As cores em seus movimentos falam entre si, por onde a personagem anda, em quem ela toca e o que ela consome ou compartilha, tudo isso nos remete a lembranças. Afinal, quem nunca pulou um carnaval entre amigos, família ou vendo na TV aquele show de cores e culturas diversas e espalhadas por todos os cantos?



Hoje Eu Só Volto Amanhã é um delicioso chá cultural e de liberdade: se quisermos resumir um pedaço da nossa brasilidade, é só servir o curta com muita vontade de sorrir e se divertir em seus 8 minutos.



Emocionado

Ficção
Direção: Pedro Melo

Por Paullo Fernando

Divertido, televisivo e surpreendente! Emocionado é o puro suco teen brasileiro. Dirigido e escrito por Pedro Melo, que surfa no desenvolvimento de uma comédia adolescente.



o filme lembra as histórias de Malhação, folheteen de sucesso nacional da televisão, com situações juvenis e um universo estudantil. Já no cinema, temos reflexões sobre este universo no curta Eu Não Quero Voltar Sozinho (Daniel Ribeiro, 2010), e no longa do mesmo diretor Hoje Eu Quero Voltar Sozinho (2014), produções que trabalham questões do ensino médio, romances e dramas da faixa etária. 



O filme entrega uma versatilidade de interpretações e inclusão fenomenais, tendo em vista que facilmente temos cenas que parece que estamos assistindo a um tiktok por exemplo, ou seja? O filme tem a roupagem e entretenimento atual que a galera gosta de consumir.

A fotografia em cores vivas e os efeitos sonoros trabalharam de mãos dadas com a direção de arte, pois o curta está recheado de cultura pop e elementos nostálgicos que só quem viveu a época saberá captar a referência.

No começo, fiquei receoso de os personagens não se desenvolverem, já que fica nítida a pegada teen no humor - não é o meu gênero favorito, mas quando bem executado não tem como ficar ruim. E foi o caso de Emocionado. 

As atuações começam meio sem se conectar, já que estamos falando de melhores amigos e, mesmo com a tentativa de mostrar isso em cenas como a do banheiro - onde demonstra a intimidade que os personagens têm um com outro -, não nos convence. Mas depois de alguns diálogos esse quadro é revertido, graças ao texto com linguagem atual e a montagem que nos diverte, enquanto Erick lida com um ficante ausente e Duda tenta colocar seu papel de melhor amiga em prática.

O curta é de fácil identificação com o público, e isso é uma grande vantagem, independente dos pontos de fragilidade. O que prova o quanto um roteiro bem escrito e um diálogo, local ou atual dentro da realidade dos personagens, pode e ajuda muito.


OYA

Documentary
Direção: Sevinç Balo?lu

Por Paullo Fernando

Com uma fotografia impecável, cenários que dão vontade de conhecer de perto e uma cultura que mistura religião, comércio e a liberdade econômica principalmente das mulheres que dependiam e dependem dos oyas para sobreviver. Oya traz o costume que é passado de geração a geração, como podemos ver na prática e em fábulas contadas pela avó Gülbiye à neta Ada.

Entre uma cena e outra, temos entrevistas com os comerciantes que ganham a vida vendendo sedas e oyas e nos mostram a amplitude que se dá a todo esse processo artístico. Nos é apresentado desde a produção de seda com os lagartos - Gülbiye ensina Ada sobre práticas que um dia ela herdou, deixando o longa seguir um ritmo tão confortável que nos faz querer acompanhar tanto os ensinamentos quanto as falas e experiências dos outros personagens.

A cada troca de entrevistado, entendemos como o processo de criação linha a linha tem significados e objetivos diferentes para cada mulher que vai manualmente cruzando a seda com a agulha e contando suas histórias. No meio disso tudo, temos Adnan, que coleciona tais peças, e sua curiosidade nos leva a conhecer mais sobre a diversidade desse universo escultural.  

A fotografia não se preocupa só em mostrar em planos abertos a beleza do local: até nos planos mais fechados e detalhados, foram captadas cores, texturas e as referências que são dadas às oyas, desde uma lenda até um quadro pintado.

Oya não é somente um traçado de tecidos, mas de histórias de mulheres que com o tempo se fortaleceram em suas comunidades, em suas culturas, e financeiramente. A diretora leva essa exclusividade diretamente de Anatólia para o mundo, já com a intenção de abranger o olhar sobre essa arte tão bonita. Como ela mesmo cita, visando que isso chegue a mais comunidades femininas que buscam uma fonte de renda e de liberdade econômica, principalmente no Japão, onde o curso já está disponível.

O filme é tão artístico que parece uma dança orquestrada apenas pelas mãos de quem manuseia as oyas, do vento que as balança penduradas nas tendas comerciais, ou nas mãos das dezenas de mulheres que saem de suas casas para vendê-las. Entender desde a colheita do material até a venda e uso das peças em rituais, cerimônias e em seus trajes enriquece toda a experiência. O filme levou três anos de produção, e a diretora consegue usar elementos narrativos lúdicos em um documentário super bem construído e editado. Uma montagem que nos tira de onde estamos e nos embarca nessa viagem milenar e extremamente colorida. 



MOSTRA ORIGENS 

06/12, 18h


Para Carlos: a complexidade da vida

Por Déborah Tomaselli

Para Carlos é um filme-carta de despedida, escrito e dirigido por Carlos Cipriano, em homenagem ao seu grande amor, que tristemente tirou a própria vida. Ao se deparar com a ausência de uma carta de despedida e sem respostas claras para essa partida repentina, Carlos busca nesta criação cinematográfica uma forma de compreender e lidar com os mistérios desta decisão. Através do filme, ele não só expressa seu amor profundo, mas também revela os anseios e planos que o casal nutria, agora interrompidos pela perda.

O curta-metragem, além de ser uma carta destinada ao amado, também se torna um diário cinematográfico autobiográfico, conduzindo o público a uma jornada intimista pelo amor e pela dor da saudade inesperada. A identidade do companheiro de Carlos é mantida em sigilo como um gesto de respeito à sua memória e imagem. Então, em uma escolha criativa inspirada em um filme que o casal gostava chamado Me Chame Pelo Seu Nome, o nome "Carlos" é usado como apelido para o personagem do parceiro na trama, intensificando a narrativa sobre o luto e a busca por identidade em meio ao sofrimento.

Ao longo do filme, o público é levado a conhecer mais sobre o companheiro de Carlos através de suas palavras, em uma sequência de reflexões sobre o amor, a vida e as opressões que as pessoas LGBTQIAPN+ enfrentam. Essas pressões, como o preconceito e a exclusão, muitas vezes levam indivíduos à exaustão emocional, resultando em tragédias como a retratada neste filme-carta.

O curta é enriquecido pela interpretação sensível do ator cubano Leo Parlay, que dá vida ao personagem de Carlos, e pela obra literária de Kaio Bruno Dias, cujos trechos dos livros Pequeno Tratado sobre as Despedidas, Eu Sempre Morro, De Surto em Surto e Respeite a Solidão Alheia são livremente apropriados para dar forma à narrativa. Essa integração entre cinema e literatura permite que a história seja não apenas uma carta de despedida, mas também uma reflexão profunda sobre o luto e as complexidades da existência.

Com uma fotografia evocativa, o filme retrata a jornada do diretor Carlos Cipriano de Goiânia para Cuba, país que serve como cenário para esta jornada dividida em capítulos que abordam reflexões sobre memórias, sentimentos, traumas e a tentativa de lidar com o luto. As imagens capturam de forma lírica as angústias e belezas dessa experiência, enquanto o diretor explora a dolorosa questão de saber se será capaz de amar novamente, dado que seu amado deixou marcas eternas.

Para Carlos desafia as fronteiras entre ficção e memória, literatura e documentário, construindo-se como um filme híbrido que navega pelos limites dos gêneros. Nasce das limitações criativas e da liberdade encontrada em um país estrangeiro (Cuba), transformando-se em um exercício de memória que, ao mesmo tempo, é uma carta de amor e uma carta para o próprio Carlos Cipriano. A obra constrói um diálogo sensível sobre o luto, relacionamentos e traumas, e nos convida a refletir sobre o valor da empatia e da alteridade em um mundo onde muitas vezes desconhecemos as dores do outro.

A mensagem final do filme é poderosa e essencial: sejamos mais gentis e compreensivos. Não sabemos o que se passa na vida do próximo, e a empatia pode ser uma força transformadora, capaz de salvar vidas ao proporcionar acolhimento e compreensão. Para Carlos é, acima de tudo, um lembrete de que, em meio à dor e à perda, podemos encontrar caminhos para a cura através do amor e da compaixão.


O Conto da Bixa: resistência, autodescoberta e transformação

Por Déborah Tomaselli

O Conto da Bixa é uma obra dirigida por Karvalio e estrelada por Stella de Eros, que também assina o roteiro. Este documentário performático baseado na cultura Ballroom transcende a narrativa tradicional, ao unir videodança e performance para contar uma história envolvente de resistência, autodescoberta e transformação. Repleto de simbolismo, explora com sensibilidade as complexas relações familiares e as questões de identidade de gênero, proporcionando uma experiência profundamente impactante.

Ao longo de seus 11 minutos, o curta-metragem convida o espectador a mergulhar no universo íntimo de uma pessoa trans, abordando temas como violência, preconceito, identidade e a fascinante cultura Ballroom, originada nas comunidades negra e latina LGBTQIAPN+ nos Estados Unidos, especialmente em Nova York, a partir do final do século XX. Ela surgiu como um espaço de acolhimento, expressão e resistência para pessoas marginalizadas, particularmente pessoas trans e não-binárias, gays e lésbicas, que enfrentavam preconceito, pobreza e exclusão.

Dentro da Ballroom, acontecem os balls, eventos performáticos onde os participantes competem em diferentes categorias de dança, moda e performance. O voguing, estilo de dança caracterizado por poses marcantes e movimentos inspirados em editoriais de moda, é uma das formas de expressão mais icônicas da Ballroom. As competições são julgadas e realizadas em um ambiente vibrante, com música, figurinos extravagantes e coreografias expressivas.

Além de ser um espaço artístico, a Ballroom é também uma estrutura social, onde os participantes formam "casas" ou houses, lideradas por figuras chamadas de "mães" ou "pais". Essas casas oferecem suporte emocional, financeiro e psicológico para seus membros, funcionando como famílias escolhidas.

Mais que uma história fictícia, esta é a própria trajetória de Stella de Eros, cineasta e artista trans que transforma suas experiências pessoais em arte, entregando-se de forma vulnerável e visceral.

Em uma das cenas mais marcantes, Stella aparece nua, amarrada com fitas, evocando no espectador sentimentos de claustrofobia e angústia. A intenção é compartilhar uma fração da essência de sua vivência, expressando a sensação de aprisionamento e a luta para se libertar de amarras sociais e familiares. 

Mesclando as cenas das performances com depoimentos íntimos da própria Stella e áudios de sua mãe, cujas palavras refletem uma relação complexa, marcada por conflito e rejeição, vemos a dureza de ser uma pessoa trans em um país que, muitas vezes, é intolerante e violento com quem foge dos padrões cisnormativos. A falta de acolhimento e apoio no núcleo familiar é um dos aspectos mais dolorosos que o filme expõe, com uma sinceridade que toca o espectador profundamente.

Mais do que uma denúncia contra a violência e o preconceito que afetam a comunidade LGBTQIAPN+, O Conto da Bixa celebra a resiliência, a beleza e a potência das pessoas que, apesar das adversidades, continuam a brilhar e resistir. Com sua estética marcante e sensibilidade poética, o filme é ao mesmo tempo uma experiência envolvente e um alerta importantíssimo: chega de preconceito!


Cartório das Almas: retratando a morte refletimos sobre a vida

Por Déborah Tomaselli

Dirigido e roteirizado por Leo Bello, Cartório das Almas é um filme distópico - uma obra cinematográfica ambientada em uma distopia, ou seja, um cenário fictício em que a sociedade apresenta características negativas extremas. Esses filmes geralmente exploram mundos futuristas, alternativos ou pós-apocalípticos onde há opressão, desigualdade, perda de liberdade, ou outras condições desumanas que refletem problemas sociais, políticos ou tecnológicos levados ao extremo. Filme introspectivo e experimental de ficção científica, a obra mergulha em questões profundas sobre a existência e a mortalidade. 

A trama gira em torno de Laura (Gabriela Correa), uma jovem de 126 anos que consegue um novo emprego: trabalhar no Cartório das Almas. Sua função é burocrática e peculiar – registrar os motivos que levam as pessoas a renunciarem à imortalidade, ou seja, escolherem morrer. Entretanto, há uma regra intransigente: é proibido tentar dissuadir os clientes. No máximo, pode-se sugerir que reconsiderem a decisão em casa, com a família.

Ao longo de seu trabalho no cartório, Laura começa a confrontar sua própria existência. Ela não se lembra bem de seu passado desde que foi condenada à eternidade e, ao contrário das outras pessoas, não tem o direito de optar pela morte.

O processo da eternidade neste universo é peculiar: aqueles que desejam permanecer imortais entram em uma banheira cheia de um líquido branco. Após submergirem, emergem sem o peso do tempo, mas também sem as memórias que tinham antes do banho. Já aqueles que abdicam da imortalidade devem justificar sua escolha por escrito, assinar e, em seguida, entrar em um compartimento semelhante a um armário, de onde saem transmutados em pássaros pretos.

O pássaro preto é o maior símbolo imagético do filme – um totem da liberdade, do mistério e da transcendência. Esse simbolismo permeia toda a narrativa, sustentando a densidade poética da obra.

A fotografia, assinada por Pedro Maffei, é bela e sombria, com uma paleta de cores frias que quase se aproxima do preto e branco. Essa escolha reforça o tom introspectivo do filme, investindo em planos expressivos e detalhistas. Elementos da natureza, como formigas, pássaros e árvores, contrastam com a aridez do ambiente artificial. Essa composição visual também reflete o isolamento de Laura, com planos gerais que evidenciam sua pequenez e solidão em meio ao campo aberto deserto.

A direção de arte e a direção de fotografia são fundamentais para criarem a atemporalidade do longa, situando a história em um "não lugar" e um "não tempo". O design mescla sensorialidade, memória e inconsciente, explorando diversas camadas da psique humana. A paleta de cores restrita transmite a frieza das relações entre eternidade, vida e morte, criando uma experiência estética que busca a estesia. O figurino de Laura reflete sua ambiguidade: peças desconstruídas, com mangas rasgadas, simbolizando sua luta entre partir e permanecer.

Com um ritmo deliberadamente lento, o filme constrói uma atmosfera calma e contemplativa, ideal para a ausência de grandes acontecimentos ou reviravoltas que caracterizam o enredo, tirando o seu final - já volto a falar sobre ele. Muitos planos são longos e os enquadramentos amplos, exibindo o céu e paisagens vastas, com diálogos escassos que reforçam a introspecção. O contraste das locações também contribui para a narrativa: o minimalismo urbano e modernista de Brasília, com suas linhas arquitetônicas futuristas, contrapõe-se à natureza precária e viva do Cerrado, onde se localiza o Cartório das Almas – uma estrutura simples no meio de uma plantação de soja.

A estética do filme me lembra inclusive o filme Cisne Negro, do Darren Aronofsky, principalmente nas cenas em que penas de pássaro preto saem do braço de Laura, usando o body horror - um subgênero do terror que explora o medo e o desconforto relacionados a mudanças, mutilações ou deformações físicas do corpo humano. Essas transformações geralmente são grotescas, perturbadoras ou antinaturais, provocando repulsa e desconforto no espectador ao desafiar os limites do que é considerado normal ou aceitável em termos de corpo e anatomia -; e a série Sandman, da Netflix. Se ainda não assistiu a alguma dessas obras, vale a pena. 

A performance de Gabriela Correa é minimalista e poderosa, focada em gestos sutis e olhares que transmitem as dúvidas e incertezas de sua personagem. Laura passa por uma jornada de autodescoberta enquanto tenta resgatar fragmentos de seu passado, principalmente através de fotografias. Sua rotina monótona e eterna é palco de reflexões profundas sobre liberdade, identidade e o peso do tempo.

O filme ganha um ponto de virada (plot point) surpreendente no final, quando revela que toda a história ocorre na mente de Laura. Na realidade, ela está em uma clínica de suicídio assistido. Este plot me lembrou o filme Sucker Punch – Mundo Surreal, de Zack Snyder, em que na verdade as protagonistas estavam o tempo todo em um sanatório, e não nas aventuras que vemos em tela. Este desfecho subverte o ritmo contemplativo e introspectivo que marcou a narrativa, trazendo uma reviravolta significativa - apesar de que pra mim não foi surpresa.

Cartório das Almas, sendo um filme sobre a morte, reflete sobre a vida. Ele nos desafia com perguntas incômodas: qual é o sentido de viver a qualquer custo, quando a existência já não possui significado? Com sua riqueza temática e impacto visual, o filme transcende gêneros, oferecendo uma experiência poética, sensorial e profundamente reflexiva.


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