Por Déborah Tomaselli e Paullo Fernando
MOSTRA RUPTURA
07/12, 14h
Inimigos Mortais e Outras Bobeiras
Ficção
Direção: Thiago Kistenmacker
Por Paullo Fernando
Surpreendentemente temos aqui uma história doce, inocente e aventureira. Rodeado de mistérios e efeitos visuais, Inimigos Mortais e Outras Bobeiras é um curta discreto que trata de uma narrativa queer envolvendo papéis que, a meu ver, são delicados. Personagens que estão desbravando o mundo e a si mesmos: isso é o que mais me encanta no roteiro e direção do Thiago Kistenmacker, pois ele consegue guiar nossos olhos para todas as direções que o filme propõe usando o laço que os dois amigos têm entre si.
A história é uma viagem de reconciliação dos dois garotos que já haviam se distanciado pela idade que foi avançando, e acontecimentos são revelados no meio do diálogo entre eles, que estão lutando contra algo em comum para se aproximarem. Essa conclusão se dá por termos vários momentos nas primeiras cenas em que um deles está mais reflexivo, e acaba sendo atraído por uma luz misteriosa.
Lá dentro desse universo, tudo se resolve. Os perigos ganham ênfase graças à trilha sonora, maquiagem e figurino, tornando a narrativa fantasiosa e, ao mesmo tempo, parece ser a despedida deles dessa fase para a próxima, após escaparem desse misterioso vilão, provando o quanto um é importante para o outro.
Por ser um filme que tem uma pitada sombria em alguns momentos, pode ser que a fotografia tenha escolhido cenas mais escuras, mas isso incomoda um pouco - poderiam ter optado por mais luzes e menos sombras nesse primeiro momento do curta. As discussões trazidas aqui são importantes, tais como bullying, sexualidade na infância e o principal ingrediente, que é como a nossa infância é uma fase divertida e cheia de surpresas.
Algo tão simples é resolvido em um desfecho de “salvação” que resgata, não só neles mas em nós, uma pureza que só a infância pode nos proporcionar, sem malícias ou maldade nas falas e gestos dos meninos.
O curta é uma janela que se abre junto aos nossos olhos: o verdadeiro inimigo mortal é a maneira como vemos as relações dos outros e as julgamos. E a bobeira é ver maldade onde existe apenas inocência e a vida acontecendo.
Sangria
Ficção
Direção: Rudyeri Ribeiro
Por Paullo Fernando
Um fim de expediente normal que acaba saindo da rotina e nos teletransportando a um teatro de poesias e contos. Sangria nos apresenta dois personagens que têm nas mãos apenas suas histórias e experiências de vida.
O diretor Rudyeri usa poucos planos abertos, ligando nossos olhos aos detalhes do bar, dos copos sob a mesa e da gangorra, em cenas fechadas, intercalando as falas, durante praticamente todo o curta, entre um gole e outro de bebida.
O roteiro é bem poético, e quem espera algo surpreendente no final ou alguma mensagem que saia do comum, não o terá. Migrando de um atendimento comum para um encontro casual, o filme revela uma noite praiana em seu desfecho que, apesar de belos cenários ao final, sons do mar durante a troca entre eles, a gente torce para o beijo ser um desfecho e tudo se encerrar ali em um final “feliz”.
Sangria é um curta intimista do diretor com suas experiências e, de certo modo, passado aos personagens, na forma como se comportam e em suas origens. Uma história de mesa de bar com riqueza de detalhes sobre duas pessoas que têm muito em comum e, ao mesmo tempo, várias diferenças.
Adoro a regionalidade e a simplicidade que ele traz na bagagem: uma garrafa de vinho, uma troca de prosa e a luz do luar é o suficiente para resultar em um encontro de almas incertas, duvidosas e talentosas.
Mesmo sem sabermos o final dessa poesia que o filme se propõe a escrever usando as palavras soltas dos personagens, a paisagem diz por si só da beleza do conto, e fica no ar. O que vocês entenderam da foto com a data?
EL HUATRILA
Ficção
Direção: Roberto Flores Muñoz
Por Paullo Fernando
Não tenho muitas referências do cinema peruano, mas estudando um pouco sobre a história dele, dá pra perceber a importância que os realizadores da sétima arte por lá dão às suas raízes sendo mostradas nas narrativas, seja por ficção ou não.
Em El Huatrila, que potencializa isso, temos Raul, apresentado já de cara as cores e movimentos culturais de sua região e nos inserindo em um dos costumes por lá. A história se desenvolve na escola onde, em preto e branco, percebemos que o mundo do personagem não é aquele, pois ele não pertence ao meio onde é obrigado a conviver.
A fotografia, em sua troca de colorações - do preto e branco às cores vivas, muitas vezes terrosas -, enfatiza e alerta sobre quando Raul está bem ou não, sendo um elemento chave trabalhado pelo diretor. Mas tal mudança não se prende somente a isto, tendo em vista que os cenários montanhosos e dos campos, mostrados em sua beleza, são todos em cores, e trazem um pouco mais de vida ao curta.
Sobre as atuações, percebo o “efeito Kuleshov”, famoso dentro do cinema soviético, e que está evidente, pela montagem e a todo momento, na feição de Raul.
Podemos notar que, independentemente dele estar em uma cena triste, suas reações quase não variam, e todos ao seu redor em seus respectivos papeis coadjuvantes deixa isso mais notável ao sorrirem e reagirem ao que acontece ao redor. Isso muda somente nas últimas cenas onde vemos o único sorriso do personagem.
O longa tem elementos fortes que foram trabalhados nos figurinos para cenas culturais que se expressam mais do que os rostos descobertos das máscaras. Estas revelam muito mais a energia e a conexão de Raul para com seu pai e sua origem ali. Em dois momentos que ele a está usando, fica perceptível que é uma cena para ligar o personagem a sua raiz. Sendo assim, ‘El Huatrila’ trabalha com êxito o jogo de cores, os laços que tentam se apertar e nos insere em um mundo particular, cheio de incômodos que o personagem tenta não fazer parte.
MOSTRA ORIGENS
07/12, 19h
Meada Cor Kalunga: preservação e valorização das identidades quilombolas
Por Déborah Tomaselli
O curta-metragem Meada Cor Kalunga, dirigido por Marta Kalunga, Alcileia Torres e Ana Luíza Reis (Analu), é uma obra profundamente sensível que explora e celebra os saberes ancestrais afrodiaspóricos da comunidade quilombola Vão de Alma, localizada em Cavalcante, Goiás. Situada na Chapada dos Veadeiros, a região é lar de um dos biomas mais preservados do Cerrado brasileiro e está intimamente ligada à cultura e aos costumes da comunidade Kalunga, o maior quilombo remanescente do Brasil, abrangendo os municípios de Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e Teresina de Goiás. Formada por descendentes de escravizados que fugiram no século XVIII, a Comunidade Kalunga preserva tradições culturais e modos de vida transmitidos por gerações.
Meada Cor Kalunga é um documentário etnobiográfico que narra a trajetória de Dirani Kalunga, com a mediação de Marta Kalunga, ambas lideranças e guardiãs dos saberes populares e quilombolas. Durante os 23 minutos de filme, as protagonistas tecem uma narrativa envolvente através da oralidade, um dos principais meios de preservação da história dos povos originários. Com naturalidade e carisma, elas compartilham memórias e práticas tradicionais, revelando um rico legado cultural.
A narrativa do curta é conduzida pela prática de processos manuais que integram a colheita, a extração de tinturas e o tingimento de meadas de algodão. Esse processo artesanal, que utiliza pigmentos naturais do Cerrado, como jenipapo, 'cabelo de nego' e sucupira, é um reflexo da relação harmoniosa entre a comunidade e o meio ambiente, destacando o valor cultural e ecológico desse conhecimento. Cada cor e cada fio tingido são um elo entre o passado e o presente, conectando as gerações e preservando a sabedoria ancestral.
O filme enaltece o poder matriarcal de Dirani Kalunga e a cumplicidade com sua comadre Marta Kalunga, que, juntas, protagonizam e conduzem essa história de resistência e pertencimento. A espontaneidade e proximidade entre as duas criam um dinamismo e uma troca sincera que encantam o espectador, transformando o filme em um retrato íntimo e potente da amizade e do companheirismo que permeiam as duas representantes da cultura Kalunga.
As equipes de direção e direção de fotografia optam por utilizar planos mais fechados e closes intimistas, criando uma sensação de proximidade e conexão ainda mais intensa com Marta e Dirani. Essa escolha estética permite ao espectador mergulhar nas expressões, gestos e emoções das protagonistas, fazendo com que cada detalhe de suas histórias e de suas vivências seja percebido de forma mais profunda e autêntica.
Mais do que uma obra documental, Meada Cor Kalunga é uma celebração da força e da sabedoria das mulheres Kalunga e dos saberes que passam de geração em geração. É uma declaração de amor à memória tradicional quilombola, um espaço de retomada e aquilombamento, que valoriza o poder do coletivo e fortalece a luta pela preservação e valorização das identidades quilombolas.
Lyceu – Resistência Nossa de Cada Dia: acolhimento e pertencimento
Por Déborah Tomaselli
Antes do período da Ditadura Militar no Brasil, entre 1964 e 1985, o tradicional Colégio Lyceu de Goiânia foi criado com o propósito de atender à elite goianiense. Fundado em 1937, foi a primeira instituição de ensino secundário da capital, sendo um marco na educação local. Com o fim da ditadura, o Lyceu assumiu um novo significado ideológico: popularizou-se, tornou-se mais acessível, transformando-se em um espaço de inclusão. Atualmente, funciona como Centro de Ensino em Período Integral (CEPI), oferecendo ensino médio em tempo integral e integrando a rede pública estadual de Goiás.
O prédio do Lyceu é um ícone arquitetônico da cidade, projetado pelo urbanista Attilio Corrêa Lima, responsável pelo plano urbanístico de Goiânia. Mesclando elementos do estilo colonial e art déco, o edifício foi tombado como patrimônio histórico em 2003, preservando suas linhas e características que remetem à identidade cultural da cidade. Em 2023, o colégio passou por uma importante reforma em suas instalações, com o objetivo de restaurar e modernizar o prédio para melhor atender aos estudantes e preservar esse patrimônio.
O documentário Lyceu – Resistência Nossa de Cada Dia, dirigido pelo coletivo de estudantes do colégio Lyceu Goiânia durante a oficina “Meu Primeiro Filme,” ministrada por Larry Machado e Tothi Santos (Dafuq Filmes), apresenta o Lyceu sob a perspectiva de quem vive sua realidade diariamente. Com uma combinação de voz narrada e depoimentos sinceros de alunos e professores, o filme revela como as relações entre os alunos são complexas, mostrando as dificuldades enfrentadas por estudantes LGBTQIAPN+ e outros grupos que ainda enfrentam preconceito e exclusão. No entanto, o documentário também destaca como, por meio de projetos e iniciativas de inclusão, o Lyceu está se transformando em um ambiente cada vez mais acolhedor e comprometido com o aprendizado e o desenvolvimento social.
Mais do que apenas um registro histórico, Lyceu – Resistência Nossa de Cada Dia é um convite à reflexão sobre o tipo de futuro que queremos para o Lyceu e as instituições de ensino, e para a sociedade. O filme não apenas nos ensina sobre a história do Lyceu e de Goiânia, mas também provoca uma reflexão sobre a necessidade de construir um ambiente escolar e social mais inclusivo e empático. A obra exalta o papel fundamental da escola não só como um espaço de formação acadêmica, mas também como um espaço de aprendizado humano, onde lições de vida, aceitação e empatia são cultivadas para moldar uma sociedade mais justa e solidária.
Tijolo por Tijolo: (re)construção dia após dia
Por Déborah Tomaselli
Tijolo por Tijolo acompanha uma família recifense que se esforça para reconstruir seu lar depois de evacuarem a antiga casa da família por risco de deslizamento. O documentário dirigido e roteirizado por Quentin Delaroche e Victoria Álvares acompanha Cris e sua família, que precisaram sair às pressas da casa onde viviam, no bairro do Ibura, em Recife, porque o imóvel foi condenado a risco de desabamento.
Tudo isso aconteceu em meio à pandemia do Covid-19 e durante a quarta gravidez de Cris, que luta para conseguir uma laqueadura pelo SUS. Na tentativa de tentar reerguer o lar mesmo com tantas adversidades, ela transforma sua realidade em inspiração ao trabalhar como influenciadora digital, compartilhando seu dia-a-dia com seguidores e, agora, com os espectadores desta obra sensível e impactante.
Nos primeiros minutos, o filme apresenta um panorama intenso dos desafios enfrentados por Cris, gerando uma expectativa de um tom predominantemente dramático e denso. Contudo, após a abertura, a narrativa assume um tom vibrante e cheio de esperança, misturando linguagens audiovisuais com um toque híbrido que combina imagens de câmeras profissionais com registros de celular feitos pela própria família protagonista.
A montagem é um dos grandes trunfos do documentário, aproximando o espectador da rotina e dos sentimentos dos personagens de forma genuína. Entre risos e lágrimas, o filme equilibra leveza e profundidade, com camadas e nuances, mostrando as dificuldades da vida na periferia sem romantizá-las.
Outro mérito do longa-metragem é a liberdade concedida aos personagens para serem autênticos diante das câmeras. Não há encenações nem direcionamentos forçados. A espontaneidade de Cris, de seu marido Albert Ventura e dos filhos, como Caíque – que recebeu um celular dos diretores para registrar seu cotidiano – cria uma conexão imediata com o público. Esses registros, somados às imagens captadas pelos cineastas e às das redes sociais de Cris, fazem uma construção rica e humana, aproximando ainda mais os espectadores da realidade retratada.
A família, com seu carisma e determinação, simboliza o brasileiro comum: sorridente apesar das adversidades e sempre pronto para driblar a situação. Sua busca por oportunidades no universo digital reflete uma realidade nacional, em que milhões de trabalhadores informais enxergam nas redes sociais uma chance de sobreviver e prosperar. Por esse conjunto da obra, é muito fácil se identificar com os personagens deste documentário. O longa nasceu de uma convivência de quatro anos entre os diretores e a família. Essa proximidade imprime uma intimidade ainda maior neste cinema documental.
A construção da casa é mais que um recurso narrativo – é sobre seguir de perto a trajetória pessoal de cada um dos personagens do filme, de toda a família de Cris. Cada um deles edifica sua própria casa, molda seu próprio futuro e cultiva seus próprios sonhos e esperanças. É ainda uma metáfora da construção do Brasil, da identidade brasileira, do País que queremos. Além de dar nome à música da trilha sonora do filme, interpretada por Alcione e composta por Serginho Meriti e Claudemir.
O momento culminante do filme, o nascimento da pequena Yasmin, encapsula as emoções da trajetória da família. O parto por cesárea — realizado conforme o desejo de Cris para fazer a sua laqueadura — é registrado com uma intensidade crua e uma intimidade marcante, fazendo com que o espectador se sinta presente nesse momento, assim como esteve ao longo de toda a jornada desafiadora. Esse momento simboliza um respiro de alegria após um período de provações. Esse arco oferece uma sensação de plenitude que contrasta com os desafios enfrentados pelos personagens. Finalmente Cris consegue o que tanto lutou: sua laqueadura e a reconstrução de seu lar.
Tijolo por Tijolo vai além de uma história de superação familiar. Costurando temas como feminismo, direitos reprodutivos, maternidade, empreendedorismo, desigualdade social e críticas ao governo Bolsonaro, principalmente durante a pandemia, o filme faz uma crítica social do Brasil contemporâneo. Ele questiona, por exemplo, por que apenas algumas mulheres têm seus direitos sexuais e reprodutivos respeitados, ou por que populações negras e vulneráveis são mais afetadas por tragédias ambientais.
Mesmo sem grandes inovações e com algumas instabilidades no som, Tijolo por Tijolo se destaca por exaltar a beleza e a força da vida mesmo nas condições mais adversas. Ele nos convida a refletir sobre o País em que vivemos, enquanto celebra a resiliência de uma família negra que constrói seu futuro, tijolo por tijolo, com coragem, amor e esperança.
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