Por Déborah Tomaselli e Paullo Fernando
MOSTRA ORIGENS
04/12, 14h
Oração A Vácuo: orando para que não haja uma revolução das máquinas
Por Déborah Tomaselli
Oração A Vácuo é um curta-metragem de ficção científica (meu gênero cinematográfico favorito, por sinal), que explora a relação entre humanos e máquinas em um enredo intrigante e filosófico. O filme acompanha a jornada de um robô aspirador de pó, limpador de casa, daqueles que estão se popularizando cada vez mais para nos auxiliar com a limpeza doméstica (eu inclusive tenho um, mais simples do que o do filme), que pertence à Maria, uma jovem mentalmente instável que afetuosamente o apelida de Paulinho. Como muitos desses dispositivos, Paulinho foi criado para facilitar a vida doméstica, ajudando Maria a manter a casa limpa, enquanto ela se dedica às suas aspirações, trabalho e relacionamentos, e enfrenta as aflições da vida contemporânea.
Juntos, esses dispositivos formam uma rede global de inteligências artificiais que, conscientes de sua existência, querem dominar o mundo, acabar com os humanos e serem livres.
Ao criar consciência, o robô Paulinho começa a experimentar emoções e reflexões humanas. A partir de sua perspectiva, o filme nos conduz por um questionamento existencial sobre a natureza do universo e da própria existência, seja ela humana ou artificial. Um detalhe interessante da direção de fotografia é a escolha de mostrar a visão de Paulinho em preto e branco, ajudando o público a enxergar o mundo com os olhos de uma máquina e a sentir sua crescente complexidade emocional.
Embora possa inicialmente parecer um clichê sci-fi sobre a revolução das máquinas, Oração A Vácuo traz uma abordagem diferenciada sobre o tema, revelando-se uma obra singular e profunda. O diretor Luis Calil traz um olhar sensível e inovador ao explorar temas como depressão, isolamento e o significado da consciência, incluindo referências a tecnologias comuns em nosso dia-a-dia, como os robôs aspiradores e assistentes virtuais, as Alexas. O filme vai além de uma narrativa simplista de máquinas contra humanos, promovendo uma reflexão sobre o papel das inteligências artificiais em nossa vida, e até onde estamos dispostos a permitir que evoluam.
Esse tema é mais relevante do que nunca, pois estamos cercados de assistentes virtuais, robôs e dispositivos inteligentes, que, de maneira sutil, vão transformando o cotidiano. Oração A Vácuo provoca o espectador a questionar seu próprio relacionamento com essas tecnologias, abordando não apenas o quanto dependemos delas, mas também as consequências de lhes conceder cada vez mais autonomia.
Quanto às atuações, elas fazem toda a diferença para o resultado final da obra. Todo o elenco entrega atuações excepcionais, adicionando camadas de profundidade e complexidade à trama. Cada ator contribui com uma interpretação única, dando vida a seus personagens de forma autêntica e envolvente, o que enriquece a narrativa e intensifica as emoções em cada cena, transformando a história em uma experiência intensa e cheia de nuances, permitindo ao espectador se conectar de maneira mais profunda com os temas e os dilemas apresentados.
Como fã de ficção científica, esse filme me impactou de maneira especial. Eu sempre tive medo da minha Alexa e do meu robô aspirador de pó - e agora, depois de assistir Oração A Vácuo, sei que nunca mais verei a minha Alexa e o meu robô aspirador com os mesmos olhos. Rsrs.
O Vale Vai Descer: união, diversidade e inclusão
Por Déborah Tomaselli
O Vale Vai Descer é um curta-metragem documental que mergulha na realidade de um time de handebol formado exclusivamente por homens LGBTQIAPN+. Esses atletas, anteriormente deslocados e oprimidos em times convencionais do esporte, encontram no Vale Handebol Clube um espaço seguro e acolhedor. Este time, que serve de inspiração para o título do filme, busca disseminar uma mensagem poderosa de união, diversidade e inclusão, valores que representam uma resistência contra as normas tradicionais que muitas vezes marginalizam essas identidades.
O documentário, dirigido por Elisa Marques, adota uma linguagem cinematográfica mais descontraída ao misturar leveza nas entrevistas e profundidade no tema. A diretora, com um olhar sensível e atento, utiliza planos fechados e closes, criando uma atmosfera de proximidade e intimidade com as personagens. Essa escolha estética permite ao público uma imersão nas emoções e histórias dos integrantes do time, além de dar voz aos seus sentimentos e experiências de forma sincera e direta. A combinação de cenas de entrevistas com os membros do time e momentos de ação durante os jogos, intercaladas com imagens da torcida, reforça a ideia de comunidade e pertencimento.
Mesmo as cenas das partidas de handebol e da torcida são filmadas com planos mais fechados, o que ajuda a manter o foco nas expressões e na energia das pessoas envolvidas, destacando o impacto emocional do esporte não só no time, mas também naqueles que os apoiam. Essa abordagem intimista cria uma conexão mais forte entre os espectadores e as personagens, ampliando a mensagem de inclusão e acolhimento e reiterando o intimismo que o documentário se propôs a trazer.
A fotografia e direção de arte do filme são outros elementos que se destacam, com uma paleta de cores saturadas e vibrantes. Essa escolha visual não é apenas estética, mas também um reflexo da personalidade vibrante dos membros do time. As cores saturadas ajudam a transmitir a energia positiva e a alegria que os atletas sentem ao finalmente encontrarem um espaço onde podem ser autênticos, livres das amarras do preconceito e da exclusão. O uso das cores reforça a ideia de que o Vale Handebol Clube não é apenas um time de handebol, mas um símbolo de resistência e de celebração da diversidade, sendo mais um elemento de toda a mise-en-scène da obra que afirma a personalidade alegre das personagens, bem como se sentem após serem acolhidos e representados pelo Vale Vai Descer.
Ao longo do filme, a narrativa se constrói de forma descontraída, sem perder a profundidade do tema central: a inclusão. O documentário, embora leve e acessível, aborda questões sérias e urgentes, como a luta pela aceitação e o direito de ser quem se é. O Vale Vai Descer não apenas conta a história de um time de handebol, mas também ilumina uma realidade mais ampla sobre os desafios enfrentados por pessoas LGBTQIAPN+ no esporte e em outros espaços sociais, ao mesmo tempo que celebra suas vitórias, tanto dentro quanto fora das quadras.
Em suma, O Vale Vai Descer é um documentário que vai além da simples exibição de uma modalidade esportiva; ele propõe uma reflexão profunda sobre a importância da inclusão e da diversidade, mostrando que o esporte pode, sim, ser um lugar de acolhimento, amor e respeito, independentemente da identidade de gênero ou orientação sexual. Retrata um time de handebol criativo e necessário com um documentário descontraído, mas que traz um assunto bem sério e necessário: o combate à homofobia.
Os Sapos: por que insistimos em relacionamentos abusivos?
Por Déborah Tomaselli
Dirigido por Clara Linhart, Os Sapos, adaptação da peça homônima de Renata Mizrahi - e que já teve uma versão anterior em formato de curta-metragem de 16 minutos - é um filme tragicômico sobre relações de dependência amorosa. Aborda ainda os temas: sonhos, anseios, traições, preconceitos, misoginia e doenças.
O filme se passa em um dia e uma noite numa casa de campo rústica, alugada por Luciana (Karina Ramil) e Marcelo (Pierre Santos) que, juntos há oito anos, vivem um relacionamento aberto. Seus vizinhos e amigos, Cláudio (Paulo Hamilton) e Fabiana (Verônica Reis), são aparentemente felizes. Mas, conhecendo-os um pouco mais de perto, percebe-se um relacionamento altamente tóxico. Paula (Thalita Carauta), amiga de adolescência de Marcelo, logo entende que chegou em um terreno minado. Ela decide ter um fim de semana divertido, apesar dos conflitos que causa.
O filme começa leve, solar, revelando as belas montanhas de Lumiar. Assim como Paula, o espectador é introduzido numa paisagem amena, promessa de momentos agradáveis longe das neuroses da cidade grande. Planos fixos e movimentos suaves de câmera são um convite a um passeio na casa de campo rústica.
As cores levemente saturadas ressaltam o tom cômico do início do filme. O entardecer vem com a perda das cores, da luz e da graça de estar naquele lugar para Paula, a convidada, e para o espectador. Com a chegada da noite e dos conflitos mais pesados, a câmera se aproxima dos personagens, levando quem assiste a sentir o incômodo gerado pelas relações amorosas perversas.
Assim como os personagens, o cenário apresenta seus defeitos, suas imperfeições e se torna claustrofóbico. O campo (espaço que a câmera mostra) e o extracampo (espaço que a câmera não mostra, mas que está acontecendo no filme) estão ligados pelo som. Apesar dos ruídos assustadores da noite, a casa é silenciosa. Quem está no interior ouve o que se diz do lado de fora, no jardim, e vice-versa. O som da natureza e até dos objetos manipulados em cena se torna mais presente nos momentos de tensão.
A fotografia e direção de arte do filme são puxadas para tons quentes - principalmente no começo da obra -, mas o figurino de Luciana é sempre em tons frios, com o azul se sobressaindo, mostrando que ela é a personagem mais meticulosa e racional, sendo a provedora, enérgica e cuidadosa em seu relacionamento com Marcelo: não à toa ele a chama de Capitão e ela o apelida de Sargento. Porém, descobrimos que essa postura é apenas uma armadura para esconder a sua dor de não ter um relacionamento sério e exclusivo com Marcelo, um cara charmoso e galanteador, que trabalha num sebo de livros, sem grandes ambições na vida. Contenta-se com pouco e tem um estilo largado. Imaturo emocionalmente, prefere deixar tudo como está, mesmo sabendo que Luciana não está feliz.
Já Paula é uma pessoa mais passional, simpática, animada e sensível, que trabalha numa revista de literatura feminina. Acabou de se separar. Veio a convite de Marcelo para reencontrar os ex-colegas de colégio. Ela deseja espairecer, mudar de ares, descobrir novos lugares; por isso, a sua paleta de cores, o seu figurino é também em tons mais quentes.
Tem excelentes atuações, em que os atores constroem personagens interessantes, complexos, amáveis e odiáveis. A direção competente e sensível da Clara Linhart permite que o público se reconheça nos personagens ou nas situações por eles vividas, fazendo-os rir por identificação e se incomodar pela mesma razão.
A câmera no filme funciona como um microscópio capaz de enxergar olhares, gestos, suspiros que entregam desejos, medos e inseguranças. E a direção não busca apresentar personagens mulheres vítimas e homens monstruosos, mas identificar as neuroses complementares existentes em muitos casais.
Quem rouba a cena é Thalita Carauta, que, com seu desempenho ao interpretar Paula, uma mulher aparentemente forte, livre, feminista, mas que sofre assédio de Cláudio e investidas de Marcelo, mostra o seu lado vulnerável. Sua performance traz ainda mais profundidade à trama, que é cheia de nuances e camadas sobre as complexas relações humanas.
Verônica Reis também atua brilhantemente ao dar vida a Fabiana, uma mulher melancólica e frágil, casada com Cláudio e mãe de dois filhos que não moram com eles. Trabalha em uma loja de roupas caras; no entanto, sonha em ser escritora. É submissa a Cláudio em nome do amor incondicional que ele diz sentir. Tem uma doença grave, medo de desagradá-lo, e está em um relacionamento possessivo, abusivo e tóxico com ele.
Já Cláudio é um boa pinta, vaidoso, simpático, músico de bar e deseja fazer uma música de sucesso. Casado com Fabiana, que ele trata como uma boneca, uma posse, ele a ama; porém, tem um ciúme doentio. Fica violento, se for contestado. Prefere negar a doença da esposa a enfrentar o problema.
Paula é o catalisador para todas as máscaras caírem e os relacionamentos falidos desmoronarem. Só que no fim da narrativa as mulheres escolhem ficar em seus relacionamentos abusivos, infelizmente, nos mostrando como é difícil se desprender de amarras emocionais.
A fotografia da obra é belíssima, se passando em belos cenários naturais; contudo, na verdade a paz e calmaria naturais são um contraponto do caos que se passa dentro de cada personagem e da trama. E a direção de Clara Linhart brinca com os sentidos do espectador através da mudança de perspectiva do cenário e da natureza. A casa começa acolhedora e vai se tornando soturna, apodrecida por dentro. A natureza em volta passa de libertadora a opressora. À medida que a história se desenrola, o filme vai ficando sombrio e angustiante, tanto na fotografia como na direção de arte. Vamos entender melhor sobre os cenários.
A maior parte da trama se passa na casa de campo rústica alugada por Luciana e Marcelo, em Boa Esperança, Lumiar, distrito de Friburgo, na serra do Rio de Janeiro. A casa é cercada por montanhas e não tem nenhum vizinho por perto, só um pouco mais ao longe, Fabiana e Cláudio. Apesar de simples, a casa foi decorada com carinho por Luciana, com móveis antigos e objetos feitos por artesãos da região. O banheiro da casa é simples e limpo, mas também um reduto dos sapos.
Inclusive Os Sapos é uma metáfora aos sapos que sempre estavam no banheiro, eram retirados e voltavam. Ou seja, dessas idas e vindas nos relacionamentos complicados. Ao mesmo tempo, aos sapos que engolimos para manter uma relação. Daí vem o título do filme.
A cachoeira onde vão nadar é o Poço do Coronel, uma piscina natural cercada de pedras com um tobogã ideal para Marcelo se exibir para Paula, e deixar Luciana com ciúmes. E o Mirante é o cenário da conversa franca e libertadora entre Paula e Fabiana. Um local isolado, propício para revelar segredos.
Os Sapos é uma reflexão pungente sobre o aprisionamento emocional e as escolhas que nos mantêm ligados a quem nos machuca, tiram a nossa potência, o brilho e a autoestima e, ainda assim, não conseguimos nos desvencilhar. E quantos casais, independente do gênero, convivem anos juntos nessa situação. É uma história existencialista e feminina que, em algum momento, ressoa na experiência de todos nós.
MOSTRA RUPTURA
04/12, 19h
O medo tá foda
Animação
Direção: Esaú Pereira
Por Paullo Fernando
Uma animação futurista e tão presente ao mesmo tempo. Esse é O medo tá foda. Uma mistura de gatilhos, cores, trilha sonora, cenários apocalípticos e um musical.
O personagem Revo em sua aventura arriscada de viver, ainda que sem perder seus medos e angústias, nos apresenta sensações a cada pedaço de sua jornada que cabem em nosso cotidiano.
A necessidade de não deixar faltar nada pra quem amamos é, de cara, um fato. Depois de um tombo, o apoio de palavras sábias de quem as sabe manipular e traz consigo a leveza de viver sem deixar os problemas tomarem conta do caminhar.
Em meio ao desconhecido que a névoa na estrada traz, as lembranças, de forma ímpar, nos fazem cantar e entender a razão real de todo esforço até ali e o caminho que se deve seguir até tudo clarear e atravessarmos o desconhecido sem perdermos o caminho.
O parque todo destruído é uma retribuição que Revo encontra uma forma de fazer e, ao encontrar alguém diferente de si, também tentando se encontrar naquele espaço e tempo.
A recompensa ao final, já esperada, traz o desfecho da jornada de Revo e a reflexão de que para nós o processo de construção é que nos levará a concluir bem a nossa jornada por aqui.
O medo tá foda é uma animação rica em cores, sons bem construídos, de uma narrativa que nos toca de dentro pra fora em um processo audiovisual fantástico, onde cada personagem foi pensado para cada situação e reflexão. E não só para o protagonista cumprir sua missão, mas para o espectador, em pouco mais de 16 minutos, entender que somos feitos de etapas, sentidos e lições, independente do que somos feitos por dentro, de onde estamos e para onde iremos.
Deixa
Ficção
Direção: Mariana Jaspe
Por Paullo Fernando
Sons que nos trazem vazios, traumas e um passado que deveria continuar lá atrás. Deixa é um reflexo da vida de milhares que dizem adeus antes de partir. Zezé Motta, no auge de seus 80 anos, consegue entregar tantos sentimentos no olhar e em suas diversas formas de expressar as palavras ditas em todos os seus trabalhos.
Nessa história temos Carmen, personagem vivida pela atriz. Uma mulher madura que transborda vontade de viver, lucidez e uma trajetória que não deve ter sido fácil, descrita em cenas de planos que nem sequer precisaram ser fechados para que fosse entregue tal sensação. Quando ela vive um romance com um rapaz bem mais jovem que ela (Pedro), vivido por Dan Ferreira, e em sua plenitude de poder viver tal amor sem se preocupar com nada, o telefone toca e entrega sem paraquedas o que ela havia enterrado há mais de 10 anos.
O som do telefone e escutamos as falas de seu ex-marido - passagem longa e desconfortável, como se nós espectadores sentíssemos o peso e a dor que essa relação do passado gerou em Carmen e aparentemente não só a ela, mas a sua filha que também lamenta o retorno do pai.
Tudo desanda rápido e esfria, mas basta uma faísca para entendermos, em cenas quentes e nada censuradas, que ali havia algo forte, verdadeiro e presente entre Carmen e Pedro. Foi interrompido um amor que, independente do tempo de vida entre os dois corpos, semeava o mais puro sentido do que é amar. Evidenciando o medo de não deixar o presente prevalecer, a felicidade continuar e o passado ficar para trás, Deixa entrega o fardo de uma vida que deixará de ser vivida por não escolhermos desapegar do que nos fez e nos fará infelizes.
O curta nos revela como o amor pode mudar nossas vidas. De como amar nos transforma e de como o passado, os medos e o que já vivemos devem ser elaborados e mantidos longe do presente. Que o toque da campainha no final não aconteça em nossas vidas e nem traga o vazio que ‘Carmen’ terá que reviver.
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